segunda-feira, 10 de maio de 2010

Coragem

Todos os dias sentava naquele bar com um bloco de papel na mão, passava horas escrevendo, tardes, noites, atravessava os sábados de cabeça baixa escrevendo naquele mesmo lugar. Tornou-se uma figura comum aos que freqüentavam o bar seguidamente, menos para mim, eu sempre quis saber o que havia naquelas tantas folhas riscadas e rabiscadas, os novos garçons passavam e olhavam para tentar desvendar o que estava escrito naqueles pedaços de papel. O homem erguia cabeça pedia o seu tradicional Martini e voltava àquele mundo só seu. Eu sempre quis saber o que havia naqueles papéis, serão cartas, histórias de uma vida inteira, bem como nós todos queremos e até tentamos falar sobre nossas próprias vidas, mas não conseguimos, nunca vemos nada de tão extraordinário para que seja escrita uma biografia a próprio punho, ou até por algum parente ensandecido após a nossa morte, mas eu queria saber o que ELE tanto escrevia.
Depois de anos sentando naquele mesmo bar e observando o senhor escrever tanto, tantas folhas, tantas anotações, tantos poemas, tanta solidão.... eu nunca havia notado aquele senhor acompanhado de alguém ou sorrindo pra alguma pessoa , a não ser para os garçons que já lhe tinham gosto e conhecimento pelo seu pedido, mas só aqueles que ele não precisava nem pedir, que quando ele sentava à cadeira , tirava os blocos do bolso do casaco escuro, já vinham trazendo a taça de Martini bianco, sua única companheira para todas as estações, ao longe parecia ser sua única inspiração também.
Nas noites de inverno as taças se estendiam para duas, três, quatro, ou até cinco, mas foi no outono que eu iria matar minha curiosidade que atravessa anos acima das anotações do solitário escritor. Mas brevemente, uma cena que eu lembro de uma madrugada incomum, ele parecia ter levantado a cabeça justamente na hora que aquela mulher, alta, grisalha, em pose de coluna reta, rosto sofrido, como a quem os anos foram árduos e difíceis, pequenas olheiras lhe passavam em baixo dos olhos como avisos de noites mal dormidas, ou preocupações, ele, ao relance viu a mulher passar levantou-se com em um pulo e saiu à porta como quem fosse atrás da figura daquela mulher, e parou no meio caminho, deu volta, sentou-se novamente e pegou firmemente aquela caneta, prateada, com algo gravado nela, como se fosse presente de alguém, ao qual, não se tem idéia de quem, e com as mãos trêmulas e aparente respiração ofegante voltou a escrever com certa ansiedade naqueles papéis. Mal conseguia manter a mão sobre o papel, levantou e saiu em súbito, passou exatamente dois dias sem ir ao bar, o que causou certa estranheza aos que freqüentava habitualmente o lugar, mas ninguém se perguntava o porque do sumiço, isso pode se dever ao fato de que o próprio homem não dava espaço para que ficassem respostas, e assim tirava as dúvidas da cabeça dos alheios, menos da minha, queria muito saber o que ele tanto escrevia. Depois dos dois dias sem ver aquela figura enigmática, ele aparece ao bar novamente e faz o mesmo ritual, retira os blocos de papel do bolso, a caneta, e espera que o garçom traga seu Martini. Baixou a cabeça, escreveu, tomou doses a mais naquele dia, com um certo desespero nos gestos de levar a mão ao Martini. Quase amanhecendo, uma noite cinza, céu sem estrelas, um leve calor que dava pintas de meia estação, o homem levemente alcoolizado, levanta-se, e no gesto de levar os blocos ao bolso deixa cair um deles perto da cadeira, junta a caneta e sai do lugar. Eu peguei o caderno e tentei ir atrás para que pudesse lhe devolver suas anotações, mas ao sair na porta e olhar para os lados, o homem havia sumido como num passe de mágica por entre as ruas que cortavam a avenida, que começava a despertar suas pessoas surgindo por todos os lados para cumprir suas tarefas matinais. Fiquei parado olhando para os blocos por um tempo, essas capas amarelas que me trouxeram anos de curiosidade, agora, finalmente em minhas mãos. Entrei no bar de novo pedi uma taça de champanhe, como uma comemoração e sentei em uma mesa atrás da que o homem costumava sentar. Abri. Lembro de ver na primeira página, uma descrição perfeita da mulher ao qual ele havia saído atrás naquela noite, abaixo algumas linhas com os mesmos dizeres: Quem é ela? Quem é ela?
Um senhor apaixonado, que escrevia cartas pra sua amada desconhecida e nunca teve coragem de entregá-las, como pode passar a vida inteira esperando ser notado, talvez nem quisesse, mas viveu solitário, em um bar, escrevendo mágoas em pedaços de papel.
Levantei com a taça de champanhe pela metade, sai de lá com o bloco na mão, caminhei pelo parque por uma manhã, coloquei na primeira lixeira que vi pela frente, não é isso que eu quero pra mim.